Apesar da fanfic ter surgido no meio impresso e depois ter ido para o digital, agora é o momento de quebrar novas barreiras e voltar para o papel. Desta vez, em formato de livros físicos. Diversas histórias que surgiram como fanfics se transformaram em obras originais e campeãs de vendas.
Esse foi o caso de Anna Todd, autora do sucesso juvenil “After”. Para unir a paixão pela boyband One Direction e a literatura, a jovem começou a publicar capítulos da história de romance entre Tessa Young e Hardin Scott, personagem inspirado em Harry Styles.
Aos poucos, “After” se tornou um fenômeno, com o primeiro livro contabilizando mais de 600 milhões de visualizações na plataforma. Em 2019, ganhou uma adaptação para o cinema, estrelada por Hero Fiennes-Tiffin e Josephine Langford. O segundo filme foi lançado em 2020 e o terceiro em 2021, com o quarto e último ainda sem previsão de estreia.
Algo semelhante aconteceu com E. L. James – pseudônimo de Erika Leonard James – após a popularização de “50 Tons de Cinza”, fanfic inspirada no romance entre Bella Swan e Edward Cullen em “Crepúsculo”. O livro entrou para a lista dos mais vendidos e também ganhou versões cinematográficas protagonizadas por Dakota Johnson e Jamie Dornan.
O Brasil também não fica de fora, pois diversas fanfics nacionais lotaram prateleiras de livrarias pelo país. Uma das mais famosas é “Sábado à Noite” (2019), escrita por Babi Dewet. Baseada nos integrantes da banda McFly, a história conquistou os fãs e virou um sucesso entre o público jovem.
Inspirada por mulheres como Babi, Anna e Erika, a cada dia mais jovens estão mostrando para o mundo como as fanfics vão além de “histórias bobinhas escritas por menininhas”. Mariana está no processo para transformar “Wild Thoughts” no livro físico “Haze!”, e Jácia será a próxima com a fanfic “Flicker of Hope”. Entretanto, a jornada para fazer esse sonho se tornar realidade não foi nem um pouco fácil.
Jácia recebeu diversas respostas negativas e explicou como foi difícil encontrar uma editora disposta a aceitar uma história – que inicialmente era uma fanfic – de uma autora que nunca havia publicado uma obra antes. Além disso, um dos requisitos dela também dificultou o processo: Jácia não queria tirar a história do Wattpad.
“Sempre deixei claro que se fosse para publicar não queria apagar da plataforma do Wattpad por respeito por onde comecei, respeito às pessoas que me motivaram. E também porque quando a fic for publicada no livro físico vai ter que mudar um monte de coisa, vai ter que mudar erros que me ajudaram”, explica. Depois de muita procura, finalmente encontrou uma editora disposta a publicar o texto seguindo todas as condições.
Jácia não foi a única com dificuldades para conseguir levar a história de forma física ao público. Ao perceber como o mercado editorial muitas vezes recusava a publicação de fanfics, novas editoras especializadas no gênero começaram a surgir, como a Editora Euphoria, focada em tramas LGBTQIA+.
O projeto surgiu com a parceria de duas autoras em maio de 2020, mas somente Nathalia Brandão seguiu com a ideia. Aos 27 anos, a jovem formada em Direito transformou o hábito de ler e escrever fanfics em um negócio. O primeiro contato com esse universo, assim como o de muitos leitores, surgiu por conta das histórias de “Crepúsculo”. “Meu sonho de criança era ser escritora. Então falei, ‘Vamos lá, vamos tentar, vamos fazer isso, todo mundo escreve, então de repente posso não ser tão ruim assim. Posso até fazer um negócio legal’”, relembra.
Porém, o que despertou a paixão em Nathalia foram as histórias do grupo de k-pop BTS. “Com BTS alguém tinha indicado uma fanfic. Fui ler a história e fiquei encantada”, admite. “Não teve mais volta, lembro que fui sugada, drenada para um abismo, ficava 24h do dia lendo fanfic, não conseguia parar mais. (...) A galera é muito talentosa. Melhor do que muito livro best-seller publicado no New York Times. Muito melhor mesmo.”
Foi então que Nathalia viu uma oportunidade. “Eu pensei ‘Como ninguém começou a passar essas histórias para uma versão original?’”. Impressionada com a qualidade das fanfics e o potencial dos jovens autores, a possibilidade de transformar essa ideia em algo concreto parecia cada vez maior.
Por sorte do acaso, uma amiga tinha planos de abrir uma editora e Nathalia se ofereceu para ser sócia. E, claro, as primeiras publicações não poderiam deixar de ser fanfics. Foi assim que “Assombrado”, história de Nathalia, virou um livro físico. Tanto essa obra quanto a da amiga foram o pontapé para o surgimento da Editora Euphoria. Com a publicação, conseguiram arrecadar o suficiente para arcar com os custos da abertura da empresa. No entanto, por conta de imprevistos, o comando da editora ficou nas mãos de Nathalia.
Publicar fanfics em formato de livro físico não é uma tarefa fácil – e quando decidiu abrir a própria editora, Nathalia foi pelo caminho mais difícil. Sozinha, precisava ir atrás de investimento e da documentação necessária para que a Editora Euphoria estivesse dentro das leis.
Por sorte, a formação em Direito foi de grande ajuda nesse momento. “Sabia como abrir uma empresa, sabia o que era necessário, só que como ainda não estava formada, não podia abrir sozinha. Precisava abrir com um advogado, então tive que ir, procurar advogado na área, um contador. Tive que começar toda aquela pesquisa do básico”, explica.
A papelada não foi o único empecilho. Naquela época, outras pessoas tiveram a mesma ideia e diversas novas editoras concorrentes surgiram no mercado. “Foi a parte mais difícil porque começaram a surgir editoras, todo mês aparecia duas ou três novas editoras. Começou a abrir uma atrás da outra.”
Mesmo assim, Nathalia não desistiu. Apesar de perder alguns clientes – entre eles, autores famosos que pretendiam fechar com ela e acabaram optando por outra editora – continuou em busca de pessoas talentosas e dispostas a fazer parte desse sonho. Por ser uma empresa pequena, os riscos são grandes, então nem todas as histórias podem fazer parte do catálogo.
“A gente não vende em livraria para poder se dar ao luxo de buscar uma fanfic no meio do Wattpad e falar ‘Nossa, essa fanfic é muito boa, independente dela ter muito público ou não, posso publicá-la porque ela vai fazer sucesso e vender super’. Não é assim que funciona”, afirma. Por isso, a Editora Euphoria prioriza histórias com grande público, para dessa forma atrair mais leitores e transformá-los em potenciais clientes para futuras publicações menos conhecidas.
“Muita gente não entende isso, falam ‘Ah porque vocês só querem fazer história famosinha para ganhar dinheiro’. Primeiro que você abre uma empresa para ganhar dinheiro, óbvio, isso é um fato. Mas a gente precisa do público dessas histórias famosinhas justamente para que histórias não tão famosas possam ficar famosas”, diz.
Por isso, selecionar quais fanfics serão transformadas em livros físicos não é um processo simples. Além de levar em conta visualizações e reputação da história nas plataformas, não há como deixar o conteúdo de lado:
“Agora eu pago pessoas em específico para atuarem como leitores críticos. Eu falo, por exemplo, ‘Olha, lê aquela história para mim’. Aí ele lê e faz um relatório com todos os tópicos que podem ser problemáticos, pode ser considerado comportamento tóxico ou abusivo dentro da história. São coisas que você sabe que não era aquilo que o autor queria passar, mas colocou de uma forma equivocada e ta passando uma imagem errada.”
Então, a editora aconselha o autor a fazer alterações na fanfic para que ela possa ser publicada sem grandes problemas. “A gente faz esse processo para que a história fique o mais saudável possível, mas sem ser censurada”, diz. Nathalia também explica como essa é uma etapa essencial e, graças à seleção, diversas histórias poderão ser lançadas até o final de 2021.
Atualmente, a Editora Euphoria é a única fonte de renda de Nathalia. Como os autores não pagam para publicar – diferente da maioria das editoras – é necessário todo um planejamento para que a venda de livros gere lucro. Após entrar em contato com os autores para selecionar as histórias, as fanfics passam por uma revisão e, então, é o momento de decidir todos os detalhes visuais e prepará-las para serem disponibilizadas para o público.
A empresária participa de todos os processos de transformação de uma fanfic em livro, desde a seleção das histórias até a diagramação das capas e vendas. “Fui aprendendo tudo do zero. (...) Sempre acreditei que quando você tem uma empresa ou quando você é o chefe de algo, você tem que saber tudo. Não pode existir nenhum problema que você não saiba resolver, porque, se você não souber resolver, como você vai ensinar o pessoal que trabalha contigo a resolver? Então eu precisava saber tudo, como tudo era feito, até para exigir um padrão de excelência.”
Atualmente, ela trabalha sozinha na maior parte do tempo, os únicos funcionários são freelancers contratados para ilustrar capas, brindes e artes para redes sociais, além de fazerem a leitura crítica e ajudar com embalagens e entregas. Quando a diagramação da capa está decidida, o livro é colocado em pré-venda. Dessa forma, Nathalia consegue o dinheiro necessário para arcar com impressão e entrega.
Atualmente, 10 títulos estão disponíveis no site com valores entre R$40 a R$50, dependendo da edição. Existem também alguns box com mais de um livro ou com dois volumes de uma mesma história. Quando os livros chegam até a Editora Euphoria, são embalados e preparados para serem entregues aos clientes. E, após as vendas, os autores ganham um percentual em cima do lucro arrecadado.
Para “After” ser publicado no formato de livro físico e comercializado ao redor do mundo algumas mudanças foram necessárias. Anna Todd precisou garantir que a obra fosse desvinculada da imagem de Harry Styles e dos outros integrantes da One Direction para que não corresse risco de sofrer nenhum processo por conta de direitos autorais e de imagem. O mesmo aconteceu com outras fanfics, como “50 Tons de Cinza” e “Sábado à Noite”.
Nathalia explica como essas alterações na história são necessárias para ela estar dentro da lei e nem a autora e a editora sejam prejudicadas com a publicação. Isso inclui não apenas alteração de nome dos personagens – os quais muitas vezes originalmente utilizam nomes das celebridades –, mas também de cenários, características físicas e, às vezes, até mesmo frases ditas por essas personalidades na vida real.
A empresária exemplificou um caso envolvendo a própria fanfic, uma das primeiras obras publicadas pela editora Euphoria. Na história original, ela utilizou uma frase diversas vezes dita por Jungkook, integrante do grupo BTS, e ao se tornar livro físico esse trecho precisou ser alterado. “Essa é uma questão de direito de imagem, iria estar associando, pegando uma frase que todo mundo sabe que o Jungkook fala e colocando ali. Então automaticamente estaria associando à imagem dele”, explica.
Quanto aos direitos autorais, Nathalia afirmou que são necessárias poucas mudanças, pois a maioria das histórias tem tramas muito originais, utilizando as celebridades apenas como personagens. Mas, caso alguma fanfic pegue elementos de outra narrativa que estão evidentes no texto, são sugeridas alterações.
Assim como outras leitoras e autoras de fanfics, Nathalia também percebeu como a maioria do público dessas histórias é do gênero feminino. No entanto, ela destacou um motivo além que atrai as mulheres para esse universo: a temática LGBTQIA+.
As publicações da Editora Euphoria são exclusivas de tramas com personagens queer. Apesar da empresária relatar como houve um grande aumento no número de leitores e autores homens, ela acha que essas temáticas ainda podem ser um certo empecilho. “Sendo a maioria das histórias LGBTQIA+, vai ser muito difícil você ter um homem hétero lendo essas histórias”, diz.
Para ela, isso acontece porque as mulheres apoiam mais esses casais, principalmente de celebridades, ou então, por conta de fetiches em ler romances com casais homossexuais. Apesar de não serem a maioria, Nathalia conhece alguns autores homens que escrevem fanfics, mas a quantidade de histórias escritas por eles ainda é muito menor se comparada às mulheres.
Além da trama, para Nathalia, o fato de o gênero romance ser predominado pelas mulheres na literatura também contribuiu para atrair mais o público feminino. Nesse sentido, a empreendedora explica que romances infanto-juvenil ou para jovens adultos, na maioria das vezes, são escritos por mulheres, por isso há um certo mito de que essas obras nem sempre são boas.
“A fanfic é vista como coisa de garotinha adolescente, e tudo que é visto como isso automaticamente tem esse estigma, de não ser uma coisa de qualidade, de ser uma coisa fútil, de ser superficial e não necessariamente é isso”, conclui. Independente de serem vistas como algo negativo ou que não merece o devido valor, Nathalia se sente realizada com o projeto da editora e, principalmente, por conseguir mostrar ao mundo como as fanfics vão muito além do que a maioria imagina.