De acordo com uma pesquisa realizada em 2017 pela livraria virtual Wordery, 80% dos livros considerados os mais populares da história foram escritos por homens. Basta uma passada rápida por uma livraria para encontrar grandes obras clássicas… quase sempre feitas por eles – ou por mulheres com pseudônimos masculinos.


J.K. Rowling, autora da série mundialmente conhecida “Harry Potter” (1998) foi aconselhada a utilizar apenas as iniciais nos livros para ter um nome que não fosse claramente feminino. Emily Brontë, escritora de “O Morro dos Ventos Uivantes” (1847), publicava sob o pseudônimo de Ellis Bell, para que não fosse facilmente identificada como mulher.

“As mulheres dominam a área de livros românticos (às vezes, no próprio romance também) — só para ter suas conquistas zombadas ou ignoradas pela cultura literária mais ampla, que não deixa de ser financiada pelo lucro dos trabalhos dessas mesmas mulheres. Resumindo, tais números significam que há uma grande variedade de mulheres talentosas das quais nem ouvimos falar. Muitas destas mulheres estão escrevendo fic.”

– Trecho de “Fic: Por que a fanfiction está dominando o mundo”, de Anne Jamison

Apesar de visíveis mudanças, o mercado editorial ainda é muito excludente com mulheres, como explicou Michelle Henriques, de 34 anos, coordenadora do Leia Mulheres, um clube de leitura voltado para autoras do gênero feminino. “Tá melhorando muita coisa porque ninguém aguenta mais, ninguém fica quieto. A gente pelo menos já brigou tanto com todo mundo, mas é isso, ainda tem muito o que melhorar. Essa galera cabeça dura não vai mudar, e a gente não tem mais idade para ficar ensinando os outros.”


Coletânea de livros de Jane Austen (Foto: Mariana Rodrigues)
Coletânea de livros de Jane Austen (Foto: Mariana Rodrigues)

O Leia Mulheres surgiu em 2015, como uma iniciativa para popularizar livros escritos por mulheres. Desde então, o grupo se expandiu para todos os estados brasileiros e até outros países. De acordo com as criadoras do projeto, essa foi uma das maneiras de ajudar a desmistificar os preconceitos acerca dessas obras.


Michelle também ressaltou como o público mais novo tem um papel importante na divulgação dessas autoras e estão sempre lutando por mais inclusão no mundo editorial. “Os jovens são muito eufóricos. Eles já entenderam que tem que ler mulher e homem. Eles estão na frente, para eles têm que ler asiático, indígena, negro, trans, não-binário, etc.”


Para ela, a internet também contribuiu para essas mudanças. Michelle reforça como o alcance nas redes sociais muitas vezes possibilita aos escritores um público maior na hora de publicar as histórias. “Mantenham essa comunidade porque é isso que vai ajudar vocês. Se vocês quiserem lançar um livro, essas pessoas vão te ajudar e vão ir atrás de vocês”, explica.



Quem manda nas fanfics são elas!


Isso também é válido para as fanfics. Muitos autores começam na internet, sem pretensão de escrever livros, e acabam transformando as fics em obras originais para publicá-las em livrarias graças à recepção dos leitores. Esse foi o caso de Jácia. “Se não fosse a internet, eu não estaria publicando. Esse feedback que deram no Wattpad foi o incentivo para publicar o livro físico.”


São nos sites de fanfics que as mulheres encontram o apoio e motivação que muitas vezes o mercado editorial não oferece. “De pouquinho em pouquinho sempre vinham meninas – porque até agora só vi um homem lendo – me pedindo para continuar, falando para não desistir. Lá fora as pessoas subestimam, mas quem está dentro vai ajudando uma a outra. As mulheres foram me ajudando e me senti motivada por elas”, relembra.


Site Fanfic Obsession (Foto: Mariana Rodrigues)
Site Fanfic Obsession (Foto: Mariana Rodrigues)

O Fanfic Obsession, um dos maiores sites de fanfics brasileiros, conta com 98% dos usuários compostos pelo público feminino. As mulheres dominam tanto na escrita quanto na leitura das histórias. Para muitas, o fato de ser um conteúdo feito por mulheres para mulheres é algo que faz toda a diferença. “Talvez seja realmente o cenário que a gente vive que ajuda um pouquinho as mulheres a terem essa visibilidade que lá fora não teria tanto. Talvez as pessoas que escrevem fanfics não se sentissem tão confortáveis se fosse outro cenário”, explica Jácia.


Quando questionadas sobre o porquê das mulheres predominarem nessa área, as respostas são diversas. No entanto, a maioria das autoras concorda com um grande preconceito vindo principalmente do gênero masculino, tanto em relação à qualidade dos trabalhos quanto às temáticas.


Isso é algo que vem desde o mercado editorial e acaba permeando na internet. De acordo com Michelle, muitos ainda não dão o devido valor às obras por acharem que é apenas um romance bobo ou “coisa de mulherzinha”. E mesmo na internet, as mulheres também não escapam dessas críticas, como exemplifica Mariana: “As pessoas acham que só quem escreve fanfic é menininha sonhadora – e não tem problema nenhum em ser. Mas acho que ainda tem muito esse preconceito enraizado de ‘ai, menina só escreve coisa bobinha’”.


Independente das críticas, essas mulheres das mais diferentes orientações sexuais, raças, idades ou regiões são unidas por uma paixão em comum. Uma paixão que, muitas vezes, proporcionou momentos incríveis, desde a versão física de uma história escrita por elas até amizades que carregaram para a vida.


No entanto, tirar uma ideia da cabeça e passar para o papel – ou nesse caso, para a tela do computador – não é uma tarefa fácil. São horas de planejamento, pesquisa, escrita, revisão e divulgação para que essas obras alcancem o máximo de leitores possíveis.


Sozinha no quarto durante a noite, na companhia apenas de uma música e da própria imaginação. Era assim que Jácia se preparava para escrever os capítulos de “Flicker of Hope”, história com mais de 30 mil visualizações no Wattpad. Nas noites de terça e quinta, a jovem libertava as ideias e dava vida para as próprias versões de Harry Styles e Louis Tomlinson.


Com uma carga dramática muito grande, a fanfic foge do estereótipo de romance clichê e apresenta uma trama sensível e envolvente sobre o luto. Uma visão delicada e ao mesmo tempo intensa do assunto, capaz de tocar os leitores. “Sabia que precisava entender sobre o que estava escrevendo, porque, querendo ou não, você está lidando com o sentimento das pessoas. Então pensei, ‘vou começar pesquisando’”, explica a jovem.


E esse foi o ponto de partida. Entender não só o luto, mas quem são esses personagens, suas dimensões psicológicas, onde vivem e como se relacionam. Afinal, apesar de serem figuras públicas, as fanfics dão a liberdade da originalidade na hora de escrever. Por isso, Jácia foi atrás de todos os mínimos detalhes para trazer ainda mais veracidade à obra. “Pesquisei um mapa de uma cidade que nunca tinha ido antes para ter noção do que estava falando. Pesquisei as leis de Londres porque envolvia prisão, quanto tempo uma pessoa passa na cadeia, como é a forma de advogar na cidade, quais são os dias de visita.”


Para ela, isso é fundamental para ajudar a desmitificar a ideia de que fanfics não têm qualidade. “Tudo foi pesquisado para ter noção do que estava fazendo. Não era porque estava escrevendo uma fic que ia fazer ela de qualquer jeito. A gente já é muito subestimada. Se for para escrever de qualquer jeito, piora completamente a situação”, explica. “Foi tudo muito calculado e muito responsável, pelo menos da minha parte.”


O PROCESSO CRIATIVO DAS FANFICS
Um bate-papo com Jácia Marcelle, autora de Flicker of Hope, e Mariana Baciquetto, autora de Wild Thoughts

Trabalho duro


E se tem alguém que também entende sobre a responsabilidade de levar informação de qualidade para o público é Caroline Serôdio, de 23 anos, webby no Fanfic Obsession, um dos maiores sites do gênero no Brasil. Desde os 15 anos, trabalha voluntariamente com centenas de garotas para manter o site no ar de forma totalmente gratuita com milhares de histórias.


O Fanfic Obsession ficou conhecido por conta das fanfics interativas, nas quais o leitor pode escolher um nome para o personagem principal, podendo ser o próprio ou algum inventado. Isso permite uma aproximação ainda maior do público com a história. Contudo, também exige um trabalho maior por parte das autoras e das administradoras do site.


Antes de serem publicadas, todas as histórias passam por uma revisão (Foto: Mariana Rodrigues)
Antes de serem publicadas, todas as histórias passam por uma revisão (Foto: Mariana Rodrigues)

Para garantir a qualidade das fanfics, todas as histórias passam por um longo processo. Primeiro, precisam ser enviadas para o site, para depois serem revisadas por leitoras betas, que opinam tanto na trama quanto corrigem possíveis erros ortográficos. Em seguida, são configuradas para se encaixarem no formato HTML e se tornarem interativas. Também existe uma equipe voltada para fazer capas, títulos e sinopses, além da divulgação dessas obras nas redes sociais.


Caroline passou por praticamente todas essas etapas, começando como leitora beta. “Eu era muito ativa, cheguei a revisar mais de 100 fanfics diferentes”, relembra. Com o passar dos anos e as ocupações da vida pessoal, deixou a leitura um pouco de lado, mas continuou participando do site. De acordo com dados de 2018, o Fanfic Obsession conta com mais de 10 mil histórias publicadas e 200 milhões de acessos mensais.


Todo esse trabalho é disponibilizado de forma totalmente gratuita. As únicas fontes de renda são a partir da receita gerada pelos anúncios e pelo projeto “Autora VIP”, no qual o autor contribuiu com uma pequena quantia em troca de uma divulgação maior do seu trabalho. Além disso, as administradoras não recebem nenhum pagamento, pois todo o dinheiro é utilizado para manter o site no ar.


Carolina também explica como todos são bem-vindos para enviar as próprias histórias. O único critério é não infringir as regras – as quais proíbem publicações com apologia a racismo, machismo, estupro, relacionamentos abusivos, entre outros.


Apesar da inclusão dos autores, ela também ressalta a predominância feminina. “Tenho mais pessoas não-binárias acessando o site do que homens, a gente não tem muitos exemplos de homens autores. Já vi meninos enviando histórias, lendo histórias, mas raramente, disfarçadamente. Nenhum se torna super conhecido ou engajado. Tem homens dentro do grupo do Facebook que às vezes comentam, mas assim 97, 98% são meninas e mulheres.”


Quem são as pessoas por trás das Fanfics?


Para traçar o perfil dos usuários do site, Caroline entrevistou 283 pessoas entre leitores e autores do Fanfic Obsession. Resultados demonstraram como o público feminino, branco, heterossexual e da região sudeste prevaleceu sobre os demais.


Dados do Fanfic Obssession (Ilustrações: Mariana Rodrigues)
Dados do Fanfic Obssession (Ilustrações: Mariana Rodrigues)

Quando questionada sobre o porquê disso acontecer, Caroline, assim como outras autoras, explicita o tratamento das mulheres fora da internet em relação às obras literárias. “É uma literatura marginalizada. A escrita de mulheres é marginalizada. [...] Se o público que escreve fanfic fosse magistralmente um público masculino, esse tipo de escrita seria também valorizada, receberia prêmios, teria todo o incentivo para essa produção”, comenta.